quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Homicídio Passional

1. INTRODUÇÃO

Este estudo tem por objetivo abordar uma modalidade criminal que perpetua na sociedade desde os tempos remotos: o homicídio passional. Trata-se de um crime cujas motivações conduzem à área da psicologia, psiquiatria, psicopatologia e da ciência penal e, principalmente, àquelas conexas ao mundo emotivo e passional.
O delito é incurso no artigo 121 e seus incisos do Código Penal Brasileiro e apresenta uma peculiaridade, isto é, o liame afetivo e/ou sexual entre vítima e acusado.
Em média, a cada dez crimes passionais noticiados, sete são protagonizados por homens. É um resíduo arcaico da sociedade extremamente patriarcal que se sustentou até a década de 1970. A infidelidade conjugal da mulher era uma afronta aos direitos conjugais do marido e um insulto ao cônjuge enganado, o que encontrava eco nos sentimentos dos jurados, que viam o homicida passional com benevolência.
Segundo pesquisa divulgada recentemente pelo Instituto Sangari, em reportagem do Jornal Nacional, dez mulheres morrem por dia no Brasil vítimas de crimes passionais, e em cerca de 25% dos casos as situações poderiam ser resolvidas de forma pacífica, mas infelizmente acabam em tragédia.
É uma aberração psicológica e ética, não justificada por nenhuma lesada honorabilidade. Não existe emoção, paixão ou honra capaz de justificá-la. Portanto, a paixão não pode ser usada como fator de redução, de atenuação de pena ou para perdoar o crime passional, mas somente para explicá-lo.


2. CONCEITO

É um fato típico, antijurídico e culpável, que causa violação, transgressão da lei. É um acontecimento que causa dano a outrem, no caso em questão, a morte da vítima. Segundo Fernando Capez, significa em tese, “homicídio por amor, ou seja, a paixão amorosa induzindo o agente a eliminar a vida da pessoa amada.”.
Segundo o Minidicionário Aurélio (2006, p.118), “amor é um sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem; a proteger ou a conservar a pessoa pela qual se sente afeição; devoção extrema.”. Portanto, é totalmente inadequado o emprego do termo "amor" ao sentimento que anima o criminoso passional, que não age por motivos elevados nem é propulsionado ao crime pelo amor, mas por sentimentos totalmente diversos, como o ódio, a posse, o egoísmo desesperado, o espírito da vingança. O passionalismo que vai até o homicídio nada tem que ver com o amor.
  

3. O CRIME PASSIONAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Nos termos do Código Penal vigente, o homicídio praticado por paixão não exclui a imputabilidade penal (art. 28, I), sendo reputado hediondo se for considerado homicídio qualificado (Lei n. 8.072/90, art. 1º).
É crime excepcionalmente inimputável quando for reflexo de um dos estados mórbidos que determinem a inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26).
O estado passional poderá ainda ser causa de atenuação ou de diminuição da pena, quando cometido sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima (art. 65, III, c e 121, parágrafo 1º).
Conforme acentuou Linhares (1978), a legislação penal se absteve à discussão doutrinária sobre incapacidade parcial, total e única. Preferiu considerar os estados patológicos totais, de um lado, e os estados patológicos incompletos de outro, atribuindo inimputabilidade aos primeiros e atenuação da punibilidade aos segundos (art. 26), sem prejuízo da aplicação da medida de segurança.
A posição acolhida pelo Código Penal em relação à emoção e à paixão reconhecem que os estados emocionais e passionais são atividades comuns ao psiquismo humano normal, sendo detectáveis em qualquer pessoa com capacidade de controlar a própria afetividade. Supõe-se que, sob violenta emoção ou paixão, não falta ao agente noção do ato cometido. O que se encontra prejudicado é a opção de agir eticamente, ou seja, o domínio sobre as suas próprias decisões.
Sobre a aferição dos aspectos afetivos, emoção e paixão, Bitencourt (2003, p. 319) assevera que a lei penal não apresenta dificuldades na distinção, pois esses estados emocionais não eliminam a censurabilidade da conduta (art. 28, I, do CP); poderão, apenas, diminuí-la, com a correspondente redução de pena, desde que satisfeitos determinados requisitos legais. Esses requisitos são: a provocação injusta da vítima, o domínio, nos casos da lesão ou do homicídio (minorantes), ou a influência, em caso de qualquer outro crime (atenuante), desse estado emocional, que deve ser violento, sob o psiquismo do agente. Então, além da violência emocional, é fundamental que a provocação tenha sido da própria vítima, e através de um comportamento injusto, ou seja, não justificado, não permitido, não autorizado.
Ressalvados esses casos, a emoção e a paixão, somente poderá modificar a culpabilidade se decorrerem de estados emocionais patológicos. Nessas circunstâncias, porém, já não correspondem à emoção e paixão estritamente falando, e pertencerá à anormalidade psíquica, cuja origem não se perquire. Se o agente comete um delito sob efeito de um surto psicótico derivado de um trauma emocional, o ato ilícito deve ser analisado à luz da inimputabilidade ou da culpabilidade diminuída, nos termos do art. 26 e seu parágrafo único.
Como todos os crimes contra a vida, o homicídio passional será julgado pelo tribunal do júri, sendo esse o momento ideal para defesa e acusação apresentarem suas versões, tentando a aplicação de uma pena maior ao agente, reconhecendo-se alguma qualificadora, ou, uma causa de diminuição, ou até mesmo uma absolvição.
  

4. A QUESTÃO DO CIÚME COMO ELEMENTO MOTIVADOR DO HOMICÍDIO

Sabe-se que muitos agente, mormente em delitos passionais, alegando ciúme, matam as vítimas.
Parcela da doutrina e da jurisprudência tendeu a considerar o ciúme como motivo fútil, vale dizer, desproporcional e abusivo, pretendendo a qualificação do ciúme. Outra parcela pendeu para a consideração de ser o ciúme um motivo torpe, logo, repugnante ou vil.  Prevaleceu o entendimento de que o ciúme não é nem fútil, nem torpe. Não se trata de justificativa para matar ou, tampouco, para excluir a culpa. Porém, não pode ser considerado desproporcional, nem sórdido.
Neste sentido, tem julgado os tribunais:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DO MOTIVO TORPE - CONCURSO FORMAL - AGRAVANTES - MATÉRIA DE APLICAÇÃO DA PENA - EXCLUSÃO - DÁ-SE PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO - Verificado ter sido o ciúme o motivo do crime, caso de homicídio passional, afastada fica a qualificadora do motivo torpe - A circunstância do concurso formal de crimes e agravantes são matérias da aplicação da pena, afeitas ao Juiz Presidente, não devendo constar da pronúncia - Havendo indícios de autoria e materialidade do crime de aborto, impossível falar-se em impronúncia, devendo a questão ser encaminhada ao Tribunal do Júri para julgamento. (TJMG - Recurso em Sentido Estrito n° 1.0000.00.262957-4/000, Relator(a): Des.(a) Gomes Lima , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 03/09/2002, publicação da súmula em 25/09/2002)
Roque de Brito Alves esclarece que "cientificamente (...), seja como fenômeno ou sentimento normal, comum ou de caráter patológico, seja em suas formas impulsivas (reações pimárias), afetiva ou na obsessiva, entendemos, em síntese e essencialmente, que o ciúme é uma manifestação de um profundo complexo de inferioridade de uma certa personalidade, sintoma de imaturidade afetiva e de um excessivo amor-próprio. O ciumento não se sente somente incapaz de manter o amor e o domínio sobre a pessoa amada, de vencer ou afastar qualquer possível rival como, sobretudo, sente-se ferido ou humilhado em seu amor-próprio. (...) O ciúme já na sua antiga origem etimológica grega, em sua terminologia em tal idioma, bem indicava tal estado psíquico de tormento, pois significava "ardor", "ferver", "fermentar", considerando-o os gregos , como um "amor excessivo", enquanto os romanos identificavam-no mais como o sentimento de inveja (Sokoloff). O próprio Santo Agostinho, em suas "Confisões" proclamou que era "flagelado pela férrea e abrasadora tortura dos ciúmes". A sabedoria popular diz que o ciumento fica "cego" pelo seu tormento, pelo inferno que vive pois a verdadeira realidade não existe para ele, somente a realidade de que "imagina" ilusoriamente, alucinadamente, falsamente" (Ciúme e crime, p. 19).
Portanto, é causa passível de impulsionar alguém ao cometimento de agressões de tal ordem, inclusive homicídio.

  
5. UM CRIME QUE ABALOU O PAÍS E IMPULSIONOU A MODIFICAÇÃO DE UMA LEI

Na noite de 28 de dezembro de 1992, a atriz Daniella Perez era esperada em um ensaio de uma peça teatral no Shopping da Gávea, Rio de Janeiro. Filha da autora de telenovelas Gloria Perez e casada com o ator Raul Gazolla, Daniella – que aos 22 anos interpretava a personagem Yasmin na novela De Corpo e Alma – encerrara a rotina de gravações na Barra da Tijuca por volta das 21horas.
O ator Guilherme de Pádua, que interpretava o personagem Bira, par romântico da atriz na trama, aguardava Daniella em um carro estacionado mais adiante do estúdio. Quando o veículo da atriz se aproximou, o carro de Guilherme interceptou o da atriz. A jovem saiu para cobrar explicações e foi, então, desacordada com um soco e levada pelo ator e sua esposa, Paula Thomaz. A cena foi avistada pelo frentista Flávio Bastos, que seria uma das testemunhas de acusação no caso.
Horas depois, o corpo de Daniella foi encontrado num matagal próximo a um condomínio com 18 golpes de tesoura – oito perfurações no coração e quatro no pulmão, e mais quatro estocadas no pescoço – e o rosto marcado por hematomas. A bolsa com seis mil dólares que a atriz levava no dia sumira.
Após receber a notícia da morte da atriz por um colega, Guilherme foi para a delegacia confortar a mãe e o esposo de Daniella. A polícia identificou o ator a partir da denúncia do advogado Hugo da Silveira, que ao chegar em casa viu dois carros estacionados em frente ao terreno escuro e, desconfiado, passou pelo local, anotou as placas e avisou a polícia. Guilherme foi detido no dia seguinte ao assassinato. No carro do ator, a polícia encontrou uma mancha escura no banco do motorista e sinais de que o veículo havia sido lavado. O frentista Antônio Clarete confirmaria em júri ter limpado o carro na noite do crime e confirmado a existência de uma mancha no assento.
Em 25 de janeiro de 1997, após quatro anos na cadeia, Guilherme de Pádua foi condenado a 19 anos de prisão. Em seu depoimento ao júri, o ator disse que Daniella o assediava e que tivera um relacionamento amoroso com ela, por interesse. A situação provocara o ciúme de sua esposa Paula e ele decidira se afastar de Daniella após saber que Paula estava grávida. Depois disso, a importância do personagem dele na novela diminuiu.
No dia do crime, após discutir com Paula, Guilherme disse que encontraria com a atriz em um local isolado, enquanto a esposa assistiria à cena, para se convencer de que não havia mais nenhum caso entre eles. Porém, Paula teria deixado o carro para discutir com Daniella. Tentando encerrar a briga, ele dera uma gravata em Daniella, deixando-a desacordada. O ator teria ido até o veículo para adulterar a placa e, ao voltar, teria visto Paula golpeando a atriz com uma tesoura.
Apesar do depoimento do ator, cinco dos sete jurados o responsabilizaram pelos golpes. O júri considerou que as lesões provocaram a morte da atriz e que Guilherme teria impedido sua defesa.
Após o assassinato da filha, a novelista Glória Perez iniciou uma campanha para coletar 1,3 milhão de assinaturas com o objetivo de alterar o Código Penal, de forma a incluir o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos. As assinaturas foram entregues à Câmara do Rio de Janeiro dois meses antes da morte da atriz completar um ano.
Os crimes classificados como hediondos recebem tratamento legal mais severo e impossibilitam o pagamento de fiança e o início do cumprimento da pena em regime aberto ou semiaberto. A iniciativa foi o primeiro passo para que a Lei nº 8.072/1990 fosse alterada, o que aconteceu em setembro de 1994. A coleta de assinaturas foi a primeira iniciativa popular de projeto de lei a se tornar lei efetiva na história do Brasil.
  

6. CONCLUSÃO

O estudo do crime de homicídio passional desvela que o estado emocional e a paixão não podem ser usados como componentes para aplicação do privilégio disposto no art. 121, parágrafo 1º do Código Penal ou como atenuante genérica (art. 65, III, c) ou como circunstância especial de diminuição da pena (art. 28, I), senão para explicar o delito. O homicida passional não mata por amor, por honra ou por acometimento de um estado de violenta emoção. Mata por degrado ético e cultural.
A tarefa do penalista não pode se limitar ao pragmatismo dogmático das normas, exclusivamente. O mergulho ao pluralismo humano, às causas delitivas, à personalidade desviante, como processo de conhecimento e superação da violência humana, é pressuposto às propostas político-criminais que se convergem em leis.



Por: Dailla Buschini Pereira
Danilo Judson Ballico Lucio
Letícia Alves Maejima
Tuane Aparecida Trovó

Referências Bibliográficas
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ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Lindemberg Alves.4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
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